Passatempo

Há um silêncio expectante no laboratório. A doutora veste uma bata branca muito limpa. Em frente da sua bancada de trabalho existe uma janela enorme de parede a parede. Lá em baixo, na cidade, a noite está a começar. O que se passa do outro lado do vidro raramente distrai a doutora do que tem a fazer, mas hoje quando um trovão soa ela olha lá para fora. Enquanto fica a aguardar o relâmpago pensa que aquele tempo de espera é a prova de que o passado avança a velocidades diferentes. É certo que pensa nisso porque daqui a pouco vai rever o rapaz com quem fez amor pela primeira vez. Reencontraram-se há poucos dias, mais de vinte anos depois. Irão passar a noite juntos. Aninhado no lado direito do peito, o coração da doutora dispara. Decide que estreará o perfume que ela mesmo ajudou a criar e que será posto à venda em breve.
O relâmpago fende o céu e a doutora regressa ao seu trabalho. Na bancada existe uma fila longa de orifícios. Em cada um deles espreita um olho que é mantido muito aberto por um conjunto de pinças. A tarefa da doutora é usar aqueles olhos para testar a toxicidade do perfume. Ao cair nos olhos, o preparado provoca um estremeção brutal nos corpos que estão amarrados por baixo da bancada. As mordaças não silenciam completamente os gemidos. Começa a chover. A chuva bate na janela e as gotas escorrem pelo vidro acima. O futuro continua à espera.

Dulce Maria Cardoso, in Visão nº 879

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