O último conto

A tensão entre os dois não faria imaginar o que se estava a passar. Casados há quase 30 anos, os filhos fora do ninho, as carreiras estáveis, a casa de férias, as viagens ao Brasil, tudo era de uma previsibilidade angustiante.
Despediam-se de manhã com o beijo habitual, ele já de jornal numa mão e chave do carro na outra. Ela demorava-se um pouco mais, para dar um ar de casa à mesma, como costumava dizer; e logo o imitava, a caminho do seu emprego.
As rotinas eram matemáticas. Depois do trabalho, casa à hora do costume, jantar à luz do telejornal, serão em peúgas de andar por casa, a dormitar ferozmente no sofá, um e outro, para acordarem sobressaltados de madrugada, rosnando por uma cama, onde dormiriam a "posta-restante" de um sono mal temperado.
A intimidade entre os dois há muito que se esvaíra.
Fruto do quê, não sabiam dizer. Demasiado acostumados, aventava ele ao espelho enquanto fazia a barba; que sempre fora nenhuma, assegurava ela dentro de si.
E assim passaram as últimas décadas até ao momento em que ela se apercebeu de que ele mudara.
Não sabia há quanto tempo, mas pudera constatar, sem qualquer fio de dúvida, que ele chegava a casa cada vez mais cedo: e era logo vê-lo a sumir-se no escritório, até ser arrancado para a mesa do jantar.
Depois deste, lá voltava ao computador, deixando para trás as peúgas de trazer por casa, sozinhas, sob a almofada do sofá.
E só voltava a encontrar a mulher já na cama, depois da birra de sono que esta envergava sempre antes de subir para o quarto.
Começou, até, a levantar-se mais cedo.
O computador, o seu destino.
Intrigada, naturalmente que ela lhe perguntou o que fazia naquelas horas. Primeiro, timidamente, lá lhe confessou que agora colaborava num blog e que lhe estava a dar grande prazer poder escrever e ser lido.
Como essa pergunta da mulher mostrava que ela se interessara, tomou isso como um convite, e todas as noites partilhava com ela os posts, os comentários, os comentários aos comentários.
Inicialmente ela achou aquele hobby, se não inofensivo, pelo menos construtivo.
Ele sempre gostara de escrever, sabia ela pelas cartas de antigamente trocadas nos tempos da tropa; que guardava escritos nas gavetas da secretária e até que os acariciava, o que ela concluiu pelos cantos desgastados dos papéis.
Mas não tardou muito para que ela começasse a sufocar naquele labirinto de relatos, que lhe toldavam a atenção dos concursos da TV ao serão. Optou, primeiro, por fingir que não ouvia, esperando que o seu desinteresse o levasse a desistir. Como não resultou, partiu para o contra-ataque: desancava os temas, insultava os comentadores, ridicularizava os nicknames; tudo servia para agastar aquele fervor da escrita do marido que lhe tirava o sossego. Chegou mesmo a chamá-lo de imaturo por precisar daquele mimo cibernauta para lhe dar consolo. "Essas massagens virtuais ao teu pobre ego mal acarinhado só vão contribuir para que a solidão te consuma e , em última instância, para que destruas o nosso casamento!" - foi a afirmação que rotulou como último aviso.
E, de facto, ele cada vez mais se consumia. Revirava agora as gavetas buscando os papelinhos escrevinhados para os reciclar e dar-lhes outra roupa; as histórias lúdicas da infância, os episódios épicos da tropa, até anedotas via e revia para ter mais matéria sobre a qual escrever. Por fim, uma bela tarde no emprego, olhando-se ao espelho da casa de banho, viu-se.
Mais magro e olheirento. Mal escanhoado, pela pressa da manhã.
O chefe a impor-lhe ultimatos, pela sua falta de dedicação.
Isto tinha que acabar. Passou as mãos molhadas pelo rosto e ficou assim, mais uns momentos, pingando para o lavatório; a estranhar aquele homem do reflexo.
Decidido, irrompeu pelo gabinete.
Pôs umas vírgulas num último conto, publicou-o no blog e despediu-se, para nunca mais voltar.
Resoluto, voltou para casa.
Cheio de vida, observava cândido a realidade que sempre ali estivera, esperando por si: as árvores da sua alameda, o cheiro a pão quente da fornada vespertina da padaria, os bancos apinhados de namorados e as suas inscrições nas cascas dos plátanos.
Encheu o peito de ar e subiu as escadas do alpendre de casa decidido a mudar também o rumo do seu casamento.
Sentia no ar o cheiro incontornável do amor.
Rodou a chave e sentiu um arrepio.
Não havia móveis. Havia apenas a sua secretária com um post-it colado ao computador.
O calafrio tomou a forma de um aviso de desmaio e sentou-se.
Pôde então ler: "Vou viver outra realidade, que não a virtual."
A sua mulher fugira com o im4real69.

Susana Moura-Carvalho in "O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder"

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