HISTÓRIA DO REINO PINTALGADO

No tempo em que os leopardos não tinham pintas nem as hienas, nem as pessoas sardas e sinais, como pintinhas espalhadas polo corpo, o mundo era muito mais liso.
Para cada coisa, sua cor, sem manchas, sem malhas das cores misturadas.
Desde o princípio que assim tinha sido pensado, tingido, pintado e retocado.
Como sempre acontece nestas coisas de pintura, sobraram uns tantos salpicos.
Para que não se espalhassem, foram todos arrecadados numa grande arca de ferro e deixados à guarda já não sei de quem.
Passado muito tempo, o rei de um reino lá do fim do mundo foi dar com a arca no sótão do palácio, onde se guardam os tesouros que já não prestam.
Espreitou para dentro dela e alguns salpicos, poucos, saltaram-lhe para a cara.
À noite, a mulher estranhou-lhe os sinais e perguntou-lhe onde os tinha arranjado.
Quando ela soube, foi também à arca e enfeitou-se com algumas. Gostou. Aquilo era divertido. E, logo no dia seguinte, começou a espalhar sinais por tudo o que lhe pareceu.
Os animais preferidos da rainha foram os primeiros a ser condecorados.
Eram os seus favoritos. E assim passaram a ser reconhecidos. Sempre que viam um cavalo pintalgado, os outros cavalos relinchavam baixinho, talvez com inveja.

- Lá vai um dos encantos da rainha!

Está-se mesmo a ver que o reino não tardou a ficar dividido entre os já sarapintados e os que também queriam ser sarapintados. A arca não foi bem resguardada, e umas vezes um pajem do rei, outras vezes um valido da rainha iam surripiando mãos-cheias muito cheias de pintinhas.
Ficou o reino pintalgado de pessoas sardentas e bichinhos pintalgados. (Dizem que foi a partir desta altura que apareceu a varicela, o sarampo e o sarampelho...)
A gente desta terra passou a julgar-se mais importante do que a gente das outras terras. Ter sinais assim era sinal de nobreza!
Para que não se espalhasse este dom, de que já ninguém sabia bem a origem, o rei impediu os seus súbditos de viajarem para diferentes terras. E proibiu os estrageiros de circularem no reino.
Segundo parece, mandou mesmo construir uma enorme muralha à roda de todo o país.
Nas outras terras de cores lisas, os reis aprovaram a medida daquele seu colega de ofício que tão prudentemente limitava ao seu próprio reino a epidemia das pintas. Não queriam contágios.
Fechado por dentro e por fora, o reino sarapintado lá ia vivendo sarapintadamente.
Só que ninguém sabia que a cabra Genica, às primeiras espreitadelas do luar, muito direitas nas suas patas, ensaiava um salto e voava por cima da muralha do reino.
Só que ninguém sabia que o mercador Vagabundo, nas suas viagens à procura de animais nunca vistos, conseguia, ataviado de bailarino em pontas, levar para o outro lado da muralha alguns bichos raros, que vendia por bom preço.
Só que ninguém sabia que, certo dia, um veado pintalgado, ao ser perseguido pelo cão da rainha, saltara por cima da muralha.
Só que ninguém sabia que o rei e arainha, disfarçados e não obedecendo às suas próprias ordens, gostavam de fugir a cavalo do cerco das muralhas, que eles próprios tinham construído, e cavalgar pela noite dentro, salpicando de coelhos espavoridos o matagal.
Só que ninguém sabia que os passáros do reino voavam para fora do reino e os passáros de fora do reino voavam para dentro do reino...
Só que ninguém sabia...
Só que ninguém sabia...
E foi assim que, pinta aqui, pinta acolá, deixadas por este e aquele, em suas fugas ao aperto das muralhas, o mundo ia ficando todo como o nosso bordado: com pontos e pontinhos, pintas e pintinhas, manchas e manchinhas... - tão diferente do mundo liso do princípio desta história.


António Torrado e Maria Alberta Menéres in Histórias em ponto de contar

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