Ter ou não ter automóvel

À mesa do café a discussão azedou. Dois amigos às voltas com as contrariedades e os aborrecimentos da vida. E dizia um deles:

- Hoje, o automóvel já não é um luxo. É uma ferramenta. Quem se vê obrigado a um trabalho de constantes deslocações não pode deixar de ter carro. É logo outra facilidade, outra comodidade. Chega-se fresco e a horas, chega-se pronto e apto a encarar calmamente os problemas que vão surgindo.

- Sim? - opôs o outro. - E o trânsito? E o sítio para arrumá-lo?

- Que é isso em face de estar horas à espera do "eléctrico", do autocarro, da carreira da camioneta, dos comboios? Um nada. E depois o carro dá para tudo: trabalho e distracção. Lá vem o fim-de-semana e, ala, a dar uma volta com a família. Praia ou campo, à escolha.

- E o preço?

-De quê?

- Do carro.

- Compra-se a prestações.

- Ainda sai mais caro. Não contando com a gasolina, os desarranjos da mecânica, a substituição dos pneus.

- Homem, alguma coisa se há-de pagar pela comodidade que se goza.

E continuaram por aí fora um a defender o outro a atacar a posse de um carro, o uso dos transportes colectivos. A ambos nunca faltou boa argumentação em pró e contra.

Ouvindo-os ilustrei-me sob certos aspectos para mim desconhecidos de como é uma maçada usar os transportes colectivos e de como também se torna inconveniente ter e usar automóvel. Por outro lado, compreendi as razões que tornam a vida agradável e cómoda quando se anda de automóvel e de igual maneira quanto de agradáveis e cómodos são para o dia-a-dia os transportes colectivos.

E eu, que sou, como diria Camilo, um homem pedestre, ouvia-os calado. Devo acrescentar, no entanto, que não conseguia chegar a qualquer conclusão, tal o calor e o poder de argumentos que os dois amigos punham na discussão.

Saímos do café. Na Praça da Figueira, despediram-se.

- Adeus - disse o defensor dos transportes colectivos, abrindo a porta do automóvel, e sentando-se ao volante. - Vê-se mesmo que não tens carro. Se o tivesses, logo sabias as dores de cabeça que isto faz.

- E tu - gritou-lhe o defensor da posse e uso de automóvel - tu é por não teres que gramar os transportes colectivos que falas assim!


Manuel da Fonseca, in "O vagabundo na cidade"

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