Sempre havia um tesouro!

Foi Carlos quem trouxe a novidade, entrando em casa como um pé-de-vento (já estava completamente curado) quase no mesmo instante em que saíra para a escola.
- Ó pai, está um anúncio na porta da casa ali defronte!
O pai levantou os olhos do jornal que tinha comprado para procurar emprego.
- O que é?
- Querem um motorista. O pai tem carta, não tem? Vá lá falar!
- Ora! Se puserem o mesmo anúncio no jornal, aparecem por lá mais de cinquenta...
- Pois sim, mas o pai está aqui mesmo ao pé. Chega antes de todos. Vá lá depresa, ande!
Contagiado pelo entusiasmo do pequeno, o pai saiu de casa e atravesasou a rua.
O Carlos ficou numa ansiedade a vê-lo dirigir-se para a casa que durante tantos dias fora o centro dos seus pensamentos. Não parecia a mesma. Pintada e restataurada, adivinhava-se lá por dentro a mesma brancura e asseio que tinham as batas e as tocas das enfermeiras que por vezes se viam atravessar rapidamente o jardim ou a correr alguma persiana.
O automóvel do "homem do guarda-chuva", agora transformado no senhor doutor que dirigia a clínica, entrava o portão todos os dias, e, se por acaso o Carlos ou a Mila se cruzavam com ele na rua, o médico fazia-lhes sempre um aceno amigável.
- Que se irá passar lá dentro? - pensava o Carlos. Mas não podia esperar pela resposta porque se fazia tarde para a aula.
Só às 4 horas (o que ao Carlos pareceu uma eternidade) tornou a falar com o pai.
Ao atravessar a rua, olhou para o prédio e vendo-o por detrás da vidraça, fez com a cabeça um movimento interrogativo.
O pai sorriu. Bom sinal.
O Carlos, excitadíssimo, correu pela escada acima.
- Então, pai?
- Não sei. É para motorista da ambulância. Mandaram-me preencher uns papéis... e agora tenho de ficar à espera de ser chamado. se for...
- Oh, pai! Isso é que era bom!
Foi realmente bom. Dias depois o senhor doutor mandou-o chamar. E ficou.
- Se não és tu, rapaz!... - disse o pai, puxando-o para si numa ternura desajeitada mas cheia de gratidão.
E aquilo foi o princípio dos tempos felizes.
Atrás do emprego do pai como motorista de uma ambulância da clínica, veio o emprego certo para a mãe como encarregada da lavandaria.
E atrás da descoberta do parentesco de ambos com o rapazito que naquele mesmo lugar partira uma perna e fora tratado pelo senhor doutor, e com a pequena que lia avidamente "A Vida de Florence Nightingale", outras coisas felizes iriam acontecer.
Por exemplo, a promessa de ajuda para que a Mila pudesse um dia tirar o seu curso de enfermagem.
O Carlos fazia projectos: se fosse bom aluno, podia vir a aprender a lidar com computadores, e talvez então o senhor doutor o convidasse para trabalhar nos escritórios da clínica... Tudo podia acontecer.
Havia acontecido tanta coisa desde aquele domingo chuvoso em que os dois irmãos tinham visto, por detrás da vidraça um homem de guarda-chuva a bater à porta de uma moradia desabitada!...
E o Carlos dizia muita vez:
- Então, quem é que tinha razão? Havia ou não havia um tesouro na casa velha aqui defronte?

Isabel Mendonça Soares in "O homem do guarda-chuva"

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