Uma vez mais

     Uma vez mais, chegadas as férias, corria à Estação Nova a tomar o comboio para o Porto. Sem tirar a capa e a batina, farda de estudante pobre para bater durante todo o curso, já que o fato coçado, herdado do irmão, se guardava para a futriquice da Invicta. Dinheiro parco, terceira classe. Ao fim da tarde. Comboio quase vazio, apesar das vésperas de Natal.
     Escolhi uma bancada sem ninguém. Não me apetecia companhia, raposinhos de sabe-se-lá-quem ou bióxido de magala ajoujado de mochilas e vozeirões de caserna.
     - Está livre? - disse a moça mais que perguntou, atirando a maleta para cima do banco em frente e sentando-se a meu lado, num suspiro.
     Olheiras roxas, face macilenta mais bonita na moldura negra do cabelo ondado, corpinho magro, franzino.
     - Cansada?
     - Levantada desde as seis, trabalhar desde as oito até quase agora... Deus! Sem tempo de levar uma bucha à boca, para poder ter uns dias de feriado com os meus pais...
     - Em que trabalhas?
     Mediu-me.
     - Estudante. Boa vida. Canté!... Eu? Costureira de alfaiate. Casear todo o dia.
     - Quem te disse que era boa vida?
     - Universidade? Só quem tem dinheiro.
     - O meu pai tem dificuldades em aguentar-me nos estudos...
     - Se ao menos estudasses...
     - Estudo.
     - Não és como esses que só querem laró e mulheres?
     - E dinheiro para isso?
     - Não acredito. Sabes quanto o meu patrão me pagou hoje, o forreta? Quarenta escudos. Vê lá.
    És mais rica do que eu - e mostrei-lhe na palma da mão os parcos cinco escudos, troco do bilhete de comboio.
     - Só isso?
     - Só isto.
     - Pensei que...
     - A pensar morreu uma burra - ri.
     Estás a chamar-me burra?
     - Estou.
     Desatou a rir também, com gosto:
     - Tu és baril.
     - E tu também.
     Olhou-me mais profundamente, um olhar prolongado, pensando, das olheiras cansadas. De repente, abre a mala e tira de lá uma sandes:
     - Toma - oferece-me.
     - Não, obrigado. Come tu.
     - Toma, meu parvo - insiste. - Eu tenho aqui outra. Fazes-me companhia?
     Aceitei. Comemos devagar, a boca cheia, calados, olhando-nos nos olhos e sorrindo.
     Quando acabámos, ela suspirou outra vez e encostou a cabeça no meu ombro:
     - Ah! - disse numa voz muito fatigada. E adormeceu.
     Todo o caminho dormiu, todo o caminho não me mexi para a não acordar, contente de lhe sentir o calor, o arfar do peito, a respiração, o cheiro, como se ela fosse minha namorada.
     Em Gaia levantou-se, alisou o cabelo, pegou na mala:
     - Adeus. Tenho de ir andando.
     - Adeus.
     Fui à janela vê-la sair. O comboio recomeçou a marcha para Campanhã. No cais, ela virou-se e soprou-me um beijo na ponta dos dedos. Não a vi nunca mais.

Fernando Campos, in "Contos da Feira"

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