Psht, ó chefe

     Um dos problemas das férias - e não menos grave - é que o nosso contacto com empregados de café tende a aumentar. Há mais tempo de permanência em esplanadas, e o convívio com aquele tipo de profissional pode causar danos irreversíveis na nossa auto-estima. Em primeiro lugar, faz falta um estudo sério que distinga os empregados de café quanto à sua ideologia. Basicamente, há quatro tipos de empregado de café. Há o autoritário-platónico, que grita para dentro da cozinha ordens como "Quero uma imperial!" ou "Quero uma tosta mista!" Aquele "quero" assusta pelo que tem de exigência ríspida, mas enternece pelo modo como toma para si os desejos do cliente. Na realidade, somos nós que desejamos a tosta mista, mas este empregado é o nosso ponta-de-lança na cozinha. E está a dizer-nos que vai disputar a nossa tosta ao cozinheiro com o mesmo empenho que teria se fosse ele a desejá-la. Trata-se, porém, de um desejo platónico, porque o empregado sabe que, embora deseje a tosta mista com a mesma intensidade que o cliente, quem acaba por comê-la somos nós. Vejam como há mais drama nisto do que parece à primeira vista. Estou convencido de que, se Shakespeare fosse vivo hoje, todas as suas tragédias se passariam em snack-bares.
     Há, também, o empregado pueril. É o que exclama "Dá uma bifana!" ou "Dá molotov!" A doçura inocente da ordem é tal que não podemos deixar de pensar que se trata de uma versão abreviada de "Dá molotov ao menino!" E isso também enternece, evidentemente.
     Há, ainda, o empregado voyeur. Este dirige-se ao pessoal da cozinha bradando "Olha o bitoque!" ou "Olha a meia de leite!" É, no fundo, um homem que contempla. Pousa o olhar sobre um prato de tremoços como Alberto Caeiro o pousava sobre os rios e sobre as flores - só que com mais poesia.
     E há, finalmente, o empregado escapista. É aquele que transforma os nossos pedidos em ordens do tipo "Sai uma sandes de carne assada!" Este empregado está interessado apenas na saída do nosso pedido, para que ele se presentifique o mais rapidamente possível à nossa frente. Escuso dizer como esta urgência é enternecedora.
     Perante isto, é inevitável que o cliente sinta que não merece ser servido por empregados que denotam este nível de abnegação. Mas não é só na dedicação à causa que nos sentimos inferiorizados perante estes profissionais. Há toda uma superioridade linguística que também achincalha. Na maior parte dos casos, os empregados de café corrigem subtilmente o fraseado dos nossos pedidos. Quem me dera ter um euro por cada vez que mantive este diálogo com um empregado:
     Eu: Queria um café.
     Ele: Deseja uma bica?
     Repare-se que, na minha frase, nem uma palavra se aproveita. É impossível não sentir embaraço por termos dito que queríamos um café quando, na verdade, o que se passa é que desejamos uma bica. Ou o Verão acaba depressa ou vou precisar de terapia.

Ricardo Araújo Pereira, in "Boca do Inferno"

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