Uma vida

     Os membros da família entreolharam-se sonolentos mas felizes com a sempre agradável sensação de terem sobrevivido às trevas de mais uma noite.
     Com efeito, quando o sol despontara no horizonte e a luz ainda crua do alvorecer já clareava a paisagem, todos se felicitaram por não faltar nenhum membro ao agregado familiar.
     A constatação visual foi confirmada pelo cheiro e pelo tacto, pois nimguém ali sabia contar, mas provocou em todos uma espécie de esgar que simbolizava um sorriso, e desencadeou uma série de urros que deveriam tomar-se como prova de regozijo.
     Animosamente, movimentaram-se em várias direcções, na busca dos alimentos que tinham armazenado na véspera, e não tardou que se acocorassem em grupo, concentrados na tarefa importantíssima de mastigar.
     De súbito, escutaram-se uns gemidos que, pouco a pouco, se transformaram em berros, atroando os ares das redondezas: era uma das mulheres que dava à luz e rolava no chão, contorcendo-se de sofrimento físico, procurando a posição de corpo mais propícia ao bom desenlace do parto.
     Como habitualmente, ninguém se importou com o facto, e todos continuaram a comer, até que os vagidos do recém-nascido se sobrepuseram ao escarcéu da mãe.
     Aí, aproximaram-se com alguma curiosidade e verificaram que o menino parecia escorreito e tinha uma expressão mais doce do que era habitual. Sobretudo, os traços fisionómicos tornavam-se mais visíveis pela ausência de pêlos nas faces...
     No essencial, não seria diferente de qualquer outra criança, mas tinha um brilho especial nos olhos, algo de estranho nos movimentos.
     O elemento mais velho da família aproximou-se e depositou-lhe uma folha sobre o corpo. E, num ritual jamais cumprido até aí, todos imitaram o gesto, e a criança ficou coberta de folhagem, protegida contra o frio da alvorada.
     O menino cresceu robusto e sadio, olhava o mundo de frente e tinha o tronco excepcionalmente erecto.
     Anos mais tarde, fenderam-lhe o crânio à pedrada - o que era um gesto comum na época... - e deitaram o corpo ao rio.
     Mas, nesse momento, começou a desenvolver-se o fenómono da memória naquela família, pois todos recordavam a figura estranha, erecta e com  poucos pêlos que as águas tinham levado para muito longe.
     Seria para outra vida?
     Milhões de anos mais tarde, a questão levantada por esse bando de neandertais continuou sem resposta convincente.

António Victorino d'Almeida, in "Os devoradores de livros"

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