A PURA DA POESIA, por Alexandre Dale


1. A POESIA SÃO PALAVRAS GRÁVIDAS

Pode-se ler um livro de poemas como se lê um romance, isto é, começa-se no princípio e acaba-se no fim, seguindo o fio mais ou menos tortuoso do enredo e da respectiva narrativa. Pessoalmente, não o aconselho. Usando algo abusivamente uma comparação com a coisa gastronómica, diria que a poesia, espécie de leveza gourmet no imenso Pantagruel das palavras (sendo que as palavras são, antes de mais, ideias), configura, paradoxalmente, uma digestão intrincada e algo morosa. Um poema é, se for daqueles já maduros, um banquete que nem os romanos, é uma orgia do sentir, um canto onde a música tem a voz de quem houve.

Vem este intróito armado ao pingarelho a propósito de dois obesos volumes de versos que repousaram uns escassos dias na minha mesa de trabalho (a poesia instiga a cobiça de tê-la, para a ter disponível, em qualquer momento, mas já a encontrar numa biblioteca pública é melhor que nada). O primeiro, de uma autora que não conhecia (e difícil será conhecer todos os poetas portugueses, já que todos o somos e somos dez milhões de potenciais candidatos), Maria do Rosário Pereira, é uma colectânea da obra, relativamente curta, da autora (o facto de ser também editora parece ter-lhe dado pudores adicionais).

Parca em títulos — tirando o dos livros avulso, apenas um ou outro poema, os outros tomam nome do primeiro verso, como se faz com alguns poetas mortos que não deixaram testamento —, tal acaba por concorrer para um discurso em que parece não haver soluções de continuidade, um pouco como se estivéssemos a ler sempre o mesmo poema (o que é valor, não defeito): o das relações íntimas, o da memória, o do sentir do humano perante o humano, sem veleidades de epopeia extrínseca, por muito que a vida de cada um de nós, insignificante que seja, prefigure a de todos, heróica ou não.

Em suma, a poetisa ensaia, nos seus versos, uma toada sem arroubos de possível uso à laia de citação (que citar, no fundo, é viver por interposta pessoa), e, seja outono ou verão, tempestade ou bonança, estes versos soam a saga antiga, a crochet de Penélope que já não espera por Ulisses, dado que é tapeçaria de toda a realidade possível de ser auscultada. Respira-se devagar, aqui, mas respira-se bem.

Maria do Rosário Pedreira, “Poesia reunida”, Quetzal, 2012

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