Biblioteca sobre rodas



"A furgoneta ancorou no largo e abriu a porta de trás.
Passaram dois miúdos e espreitaram-lhe para o bojo.
Esperavam ver brindes, bolas, rebuçados, mas só havia livros.
Ruminavam sobre tanta lombada quando chegou a Josefa,
a mulher do tipógrafo do Comércio do Porto.
Vinha trocar o Alexandre Dumas pela Odete Saint Maurice.
Depois apareceu a Júlia, a aprendiza de modista.
Demorou-se em negociações com o bibliotecário,
queria arriscar uma leitura mais audaz,
folheava um Aquilino como se aferisse a penugem dum veludo,
torcia o nariz a um Eça, pedia opinião sobre um Camilo.
Acabou por levar um Júlio Dinis - à experiência.
E um Corin Tellado - por segurança.
Um rapaz espigadote passou por ela e perguntou
- vais aprender a escrever cartas ao teu namoro na Guiné?
Ela fustigou-o com uma injúria e seguiu caminho
com a altivez de quem é boa demais para pisar aquele chão.
O filho do merceeiro só deu de si ao lusco-fusco
para deixar o Júlio Verne e levar o Emílio Salgari.
Era sempre o último porque estudava no Infante 
e apanhava de seguida o trolley até à Praça da Galiza.
Só então a carripana acendia os faróis amarelos,
para voltar quinze dias depois, sempre à quinta-feira.
À noite, quando o silêncio desemboca no pensamento interior,
aquelas almas espreitavam o bojo das personagens.
Eram pequenos deuses obsequiados pela máquina da literatura.
Mas ninguém explicou àqueles dois miúdos a sua utilidade."

Carlos Tê (textos) e Manuela Bacelar (ilustrações), in "Cimo de Vila" 


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