Um significado peculiar

   "Há expressões que mudam de significado consoante a região, há ditos que nos fazem lembrar certas pessoas, há palavras que evitamos porque são, no meio em que vivemos, entendidas como uma ofensa a A ou a B, enfim, a nossa língua é viva e as palavras ganham todos os dias novos sentidos. às vezes inesperados. 
   Aqui se dá conta de um termo que, quando usado na nossa terra, não serve para pedir ao nosso interlocutor para não levantar problemas ou para não fazer críticas, como é comum em todo o lado, mas sim para lembrar duas figuras populares, de um passado pouco distante, que eram o senhor Pinto e o senhor Cardoso. Bons vizinhos e inseparáveis amigos, desde há muitos anos companheiros da sueca, todos os dias à tardinha, encontravam-se na taberna do Zé da Loja, ora para conversar, ora para jogar às cartas, sempre para beber dois copos e saber as novidades da terra, em conversas que às vezes se revelavam demoradíssimas, a falar de tudo e de nada, fraca justificação, no entender dos familiares, para um regresso a casa tão tardio, quantas vezes a desoras, frequentemente bem bebidos os dois, uma ou duas vezes por semana, de caixão à cova.
   Importa ainda dizer que ambos estavam aposentados, o senhor Pinto de guarda fiscal e o senhor Cardoso de funcionário dos Caminhos de Ferro, sendo o primeiro um homenzarrão, com mais de um metro e oitenta de altura e pesando muito mais de cem quilos, a contrastar com o senhor Cardoso, homem baixo e atarracado, com uma barriga enorme, onde gostava de apoiar as mãos em cruz e nesse propósito esperar, encostado à porta da taberna, a chegada do amigo Pinto, para este muitas vezes lhe dizer, entre duas risadas:  
   - Ó Cardoso, tira-me esse pipo do sol, se não ainda azedas o vinho!
   Aconteceu que, numa noite de Inverno, em que ambos vinham para casa sem nenhuma sede, desabou um chuveiro medonho, daqueles que em pouco tempo, encharcam uma pessoa até aos ossos. Por isso, e por sugestão do antigo guarda fiscal, procuraram abrigar-se debaixo das escadas da casa do Faísca, compadre do Pinto, abrindo o tramelo da cancela que dá para os currais e que, felizmente para eles e para quem mora em terra tão pacata, não precisa de chave, pois ali não vivem ladrões.
   Estavam ambos a acomodar-se quando o chão se lhes abriu debaixo dos pés, uma vez que, sob as escadas, fora construída a fossa séptica para serventia da casa e as tábuas que a cobriam estavam podres, não aguentando com o peso de tão avantajados intrusos.
   Enterrados no lodo, o senhor Pinto, porque mais alto, foi quem primeiro começou a tentar sair daquele atoleiro, enquanto o senhor Cardoso, de estatura muito mais baixa, como se disse, procurava, apenas, manter a boca de fora, nem sempre com êxito, mas sem queixumes. Todavia, quando percebeu que era o amigo que, na tentativa de se safar, agitava a água choca, que tanto o atormentava, mostrou de imediato a sua aflição, começando a gritar, repetidamente:
   - Ó Pinto, não faças ondas! Ó Pinto, não faças ondas!
   E é por isso que esta expressão, na nossa terra e enquanto as pessoas se lembrarem dos bons amigos Pinto e Cardoso, tem um significado peculiar, que só nós conhecemos."

António da Silva Ramos, in "Histórias devidas"

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