I de mim

   "A mulher com quem partilho a minha existência sobre este planeta chamou-me a atenção para um pormenor: a nossa incapacidade - e a minha, em particular - para estar como se estava antigamente. Ou seja, estando. Passo a explicar: boa parte da Humanidade deixou de saber estar em sítios sem fazer nada - por exemplo, quando se está à espera de alguém. Deixámos de saber olhar para o ar, para as pessoas que passam, para os pássaros ou ramos de árvore balançando com doçura ao vento (ou com força, em dias de vendaval); deixámos de ser capazes de pensar na vida ou, simplesmente, de praticar a nobre arte perdida de esvaziar a nossa mente e não pensar em nada. Porquê? Porque temos telemóveis.
   Na verdade, há décadas que temos telemóveis, mas durante muito tempo eles pouco mais faziam do que chamadas. Ou seja, por muito que admirássemos a modernidade do objecto, não tinha grande coisa para nos encantar que não a fascinante possibilidade de telefonarmos para quem quiséssemos. De repente, devagarinho, a alienação começou. Culpa das SMS, sim senhor; mas responsabilizo também os criadores de Snake por terem aberto a porta: foi com o lendário jogo da cobra rectangular comilona que começámos a baixar a cabeça nos tempos livres e a deixar de encarar o nada. Nós pura e simplesmente tínhamos de alimentar aquele estupor daquela cobra!
   Aos poucos, um telemóvel deixou de ser só um telemóvel - e hoje carregamos orgulhosamente na algibeira centros de entretenimento mais poderosos do que um multiplex de 10 salas, com ligação ao divertimento mais infinito de todos: a Internet. Resultado? Se temos o telemóvel na algibeira e se está carregado, temos de estar a fazer alguma coisa com ele. Acontece que eu nunca tinha racionalizado isto, o que é inquietante: sacar do telemóvel enquanto espero, por exemplo, que a pessoa amada saia de uma loja de roupa tornou-se tão natural e inquestionável como respirar - simplesmente, fazemo-lo. Faz parte desse momento - como alçar a perna quando passamos por uma poça.
   É claro que - como manda a tradição - quando a pessoa amada nos diz uma verdade, é nosso dever contestar e provar-lhe que tal se trata de um exagero. Mesmo que, no fundo da nossa mente - ou talvez nem sequer tão fundo - uma voz nos garanta: «Raios, ela tem razão.» Por isso, decidi mostrar-lhe que poderia, de forma natural e sem esforço, deixar o telemóvel em casa e, num eventual tempo de espera que ocorresse, durante uma visita dela a uma sapataria, por exemplo, praticar o nada com o mesmo talento que me tornou famoso a praticar o nada na minha juventude, e que levava pais e professores a considerarem-me «distraído» e «sempre na Lua». Não era isso; eu estava, de forma exímia e com grande talento, a estar.
   E foi horrível, porque assim que a minha mulher entrou na loja, a minha mão, como que movida por vontade própria, deslizou, rápida e eficaz, pelo bolso das calças adentro - constatando, em choque, que nenhum telemóvel lá estava. seguiu-se um profundo desconforto: tremuras, suores - e uma nova incursão por todas as algibeiras das calças. Já sabia que não estava lá qualquer telemóvel, mas tinha de lá estar alguma coisa que me «vestisse», que fizesse desaparecer esta terrível sensação de estar nu em público, de ter de olhar para coisas e pessoas ou de abraçar a relaxante pacatez do não fazer nada.
   E estava.
   Caramba, já repararam como uma bolinha de cotão de bolso de calças pode conter cores e cambiantes tão fascinantes? Ah, se o cotão tivesse wi-fi..."

Nuno Markl, in "Miopia e astigmatismo"
    

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