Maria-Rapaz de Collants
"Assim que o pai passava para a garagem, no fundo do quintal, lá ia ela, silenciosa, no seu encalço.
Era chegado o momento de observar atentamente as experiências mecânicas que ali tomavam forma.
O pai não fazia daquilo profissão - longe disso - mas a verdade é que tinha uma habilidade recheada de imaginação ao ponto de transformar uma máquina de lavar num motor para a piscina ou uma esferográfica numa antena de televisão.
Também os carros lá de casa eram alvo destas invenções.
Era raro ser necessário levar qualquer um deles à oficina.
O pai encarregava-se de detectar as falhas e, cioso do seu instinto inventivo, colmatava-as. Por vezes, reinventava funções, daí que não fosse invulgar a mãe ser obrigada a usar a manete do volante não para limpar o pára-brisas mas para ligar a chauffage cujo botão se havia partido e por aí fora.
Esta escola caseira veio a dar-lhe, também a ela, algum instinto mecânico que teve oportunidade de testar quando, aos 16 anos, recebeu de presente metade de um Mini.
A outra metade pertencia à sua irmã que tinha acabado de tirar a carta; pelo que se revelara sensata a opção de esta última ter ficado com a metade que tinha volante.
Olhava-se para o carro e as diferenças saltavam à vista.
Do lado canhoto havia rebuçados para oferecer às boleias; havia autocolantes de marcas de pranchas de surf e havia, sobretudo, um brio feminino, daquele indizível, mas que está lá, nos mais pequenos detalhes.
Já do seu lado eram visíveis as invenções: os novos puxadores de porta inquebráveis (que nos Minis se partiam num ápice!), os manómetros a fingir pousados no tablier oco e as incontáveis ferramentas despejadas pelos cantos, cuja única função era conferir a cada viagem uma banda sonora de tilintes, à falta de telefonia à altura.
Quando aos 20 anos começou a trabalhar num atelier muita coisa mudou na sua vida.
Os fins de tarde já não eram passados a jogar a bola contra a parede da casa, e a bicicleta ficou encostada na garagem por largo tempo.
As únicas lembranças desses momentos viviam sob a forma de vagas nódoas negras nas canelas, agora cobertas por collants, por insistência da mãe, que achava apropriado uma jovem vestir-se formalmente no emprego.
O desconforto, claro, era muito. Os sapatos rasos mas decotados, o tailleur curto e justo; tudo aquilo lhe dava uma desconfortável sensação de impotência.
E foi isso que sentiu, um fim de tarde, no Prior Velho, por entre barracões e armazéns inóspitos, quando o seu fiel Mini desatou a reclamar, deitando fumo pelo capot.
Rapidamente se apercebeu de que tinha, além de uma dezena de olhos gulosos a observá-la, a correia da ventoinha rebentada.
Por um momento, que roçou uma eternidade, sentiu-se como um peixe ferido num mar de tubarões.
Os ociosos homenzinhos, que zombavam entre bigodes farfalhudos, avolumavam-se em seu redor, a uma distância suficientemente próxima para observarem com deleite o seu tormento, mas simultaneamente distantes para não serem chamados a prestar auxílio.
Afinal era muito mais divertido deixá-la a penar atrás daquele capot.
Daí que, quando a viram em esgares físicos, lutando com os collants, se tenham convencido ainda mais do gozo que aquilo viria a dar e atreveram-se a dar as primeiras sonoras gargalhadas.
Ela lá continuava - mexendo e remexendo no motor.
Minutos depois, fecha o capot. Os olhos espantam-se.
Confiante, entra no carro, roda a chave e põe-se a andar dali, deixando para trás os mesmos dez olhos, incrédulos, perante a ausência de fumo ou outro sintoma de anomalia mecânica.
Lá dentro, já rolando pela estrada, ela ria. Ria de glória.
Só não sabia como agradecer à mãe a insistência nos collants; afinal de contas, se não os tivesse despido e feito deles uma improvável correia de ventoinha, não estaria agora, vencedora, a caminho de casa."
Susana Moura-Carvalho, in "O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder"
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