Sebastião e a guitarra

   "Um dos milionésimos problemas da educação prende-se com a capacidade de persuadirmos os nossos filhos a fazerem coisas que achamos fundamentais para a sua vida futura. Sabem os deuses quantas vezes nós próprios duvidamos das certezas que lhes tentamos impor. Mas, tomada a decisão, resta a árdua tarefa de os pôr a fazer o que julgamos certo.
   A coisa torna-se ainda mais complicada quando se tem mais do que um filho. Quem os tem, sabe quão diferentes podem ser as cabecinhas de criaturas criadas da mesma forma. Uns fingem que ouvem, outros nem fingem. Uns são sensíveis à ameaça de umas bofetadas, outros nem tanto. Enfim.
   No fundo, temos de descobrir o que os motiva ou, na pior das hipóteses, o que os amedronta. Que fique claro, não sou daqueles pais que pensam que não se pode tocar nas criancinhas: um bofetão, no momento certo e na circunstância correta, vale mais que trezentos discursos.
   Às vezes acertamos.
 Na sequência de um desentendimento com o professor de guitarra sobre o número de horas necessárias a uma boa aprendizagem, o meu filho Sebastião quis desistir das aulas de guitarra. Como pai moderno, tentei dialogar: «porque é importante para a tua educação», «Mais tarde, vais agradecer-me». O rapaz olhou para mim com cara de enfado, encolheu os ombros e disse-me: «Pronto, lá vens tu com as falinhas mansas do costume.»
   Confesso, nessa altura hesitei entre um carolo e uma bofetada, mas, como pai liberal, contei até dez, suspirei e voltei à carga: «Meu querido filho, o teu pai adorava ter estudado música e não teve oportunidade e, com sacrifício (é mentira, mas fica sempre bem), quer dar-te essa dádiva única (mordi o lábio, esperando que ele não se risse) e, além do mais, isto é importante para o teu futuro.»
   O sacaninha riu-se mesmo e desfiou o rol de queixas e verdades absolutas daquele dia: que o Bill Gates nem campainhas sabia tocar, que a música deveria ser divertida, que ler risquinhos num papel era uma maçada, que assim não tinha tempo para jogar PlayStation 2 e mais umas quinhentas mil coisas que já não ouvi porque, nessa altura, a minha mão esquerda ganhou vida própria e tentou agarrar um pau de marmeleiro (madeira levezinha...). Felizmente, a minha outra, mais ajuizada, agarrou na dita canhota e a situação não se descontrolou.
   Pus o meu ar mais sério e preparei-me para o que pensava ser o argumento definitivo, o clássico, «meu filho, tens 11 anos e eu é que sei o que é melhor para ti». Mas Nossa Senhora de Fátima, Santa Rita de Cássia e todos os outros santinhos e santinhas do céu iluminaram-me e ouvi desta minha boca que a Terra há de comer: «Ó Sebastião, és mesmo otário, pá. Os gajos que sabem tocar umas músicas têm sempre montes de raparigas atrás deles.»
   O Sebastião teve 20 valores no exame de guitarra."

Pedro Marques Lopes, in "Suaves portugueses"

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