BIOGRAFIA

   "A sequência, aparentemente lógica, de uma biografia é simples: nascemos no dia tal do ano da graça de x, vamos ou não para a escola, arranjamos um emprego ou outra atividade parecida, temos mulheres ou mulher, temos filhos ou não, somos mal ou bem-sucedidos, fazemos qualquer coisa de maior ou menor importância - o critério é à vontade do freguês -, envelhecemos e morremos. Tudo isto como uma história contínua, sem retrocessos e, sobretudo, como se cada período da nossa vida matasse o outro ou, em alguns casos, o condicionasse. Uma espécie de escada, em que a subida de um degrau fizesse desaparecer o anterior.
   A biografia parte sempre do princípio de que a única verdade é a existência ou o momento.Que o que fazemos é o que vivemos numa dada altura. Como se o que está no passado fosse apenas um prefácio do presente. Despreza a nossa vida mais íntima: a insegurança nas nossas decisões, os nossos medos mais inconfessáveis, as nossas memórias - tantas vezes mais presentes do que os momentos que estamos a viver e mais condicionadores de que as perspetivas de futuro com que tantas vezes nos iludimos. 
   A verdade é que nós somos mais, muito mais, do que o presente: somos o que for a nossa memória. Podemos construir a nave que levará os terráqueos a Júpiter mas o nosso maior feito será sempre o que ficou marcado na nossa mente: o beijo que demos na loirinha nas cadeiras de trás da sala da quarta classe, o golo que marcámos no jogo de futebol contra os rivais do outro bairro, a redação elogiada no sétimo ano, o olhar orgulhoso da nossa mãe quando acabámos o curso, o primeiro choro do nosso filho.
   Vivemos continuamente os dias, as horas e os minutos que nos marcaram e muitas vezes, vezes demais, morremos depois deles. O que está para a frente ou para trás pouco importa, nós fomos nós naquela altura. É, para o bem ou para o mal, o que importa na nossa biografia. Ninguém é capaz de a fazer, nem mesmo nós." 

Pedro Marques Lopes, in "Suaves portugueses"

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