Uma ideia de partilha

   "Em 2009 publiquei um romance que se chama A sombra do que fomos. É um romance geracional porque fala das pessoas como eu, nascidas em finais dos anos quarenta, e foi concebido um dia, em Santiago do Chile, durante a cerimónia de preparação de um asado, um churrasco. Eu observava de longe o homem que preparava o fogo, sozinho: era um companheiro da nossa idade, e tinha sido o adversário mais odiado pela ditadura de Pinochet. O exército, a polícia, os serviços secretos tinham ordens para o matar assim que o vissem, onde quer que o encontrassem: execução imediata. Porque este senhor, que se chama Martín Pascual, era o comandante da força política armada, a Frente Patriótica Manuel Rodriguez, que, com perseverança e determinação, conduzira durante a ditadura uma guerrilha sem um único dia de trégua. Em catorze anos, todos os dias houve uma ação armada da FPMR. Tinha atormentado o regime ao ponto de o obrigar a dialogar com as outras forças políticas, para chegar a uma conciliação civil das divergências.
   Agora o homem mais odiado da ditadura estava sozinho, à parte, embrenhado na cerimónia de preparar o fogo, espalhar o carvão, fazer as brasas. Estava sozinho porque cada chileno tem uma maneira particular, pessoal, íntima e secreta de começar a preparar o fogo para grelhar a carne. Aproximei-me um pouco e disse-lhe respeitosamente: «Olha, eu não quero copiar o teu segredo, gostava de falar contigo sobre outras coisas». E enquanto falávamos, na grelha iam-se sucedendo várias carnes. Primeiro chegou o frango, preparado com a receita pessoal, íntima e secreta das pessoas encarregadas do churrasco: fantástico, com a pele crocante. A seguir as costeletas de carneiro, também elas marinadas de uma forma individualíssima. Depois o porco, sempre com uma receita da qual não se podia revelar nada. Por fim, a carne bovina.
   À mesa começámos a discutir sobre a razão de termos esta paixão pela comida, com tudo o que isso significa: a preparação, a cerimónia, o amor que se concretiza no momento de virar uma, duas vezes a carne. E questionámo-nos sobre a razão de sermos tão diferentes dos argentinos, que, pelo contrário, põem em comum o conhecimento culinário Quando se faz uma festa assim na Argentina, quem cozinha chama sempre os amigos todos, que se juntam em volta do grelhador e desse modo aprendem. Ao invés, no Chile preparamos a comida como se guardássemos ciosamente sabe-se lá que segredo, com uma espécie de hedonismo privado que é realmente específico da nossa nação. O meu amigo defendia que era por causa da grande diferença entre o sentido da vida e da sociedade argentina e chilena: «Em relação à nossa, é uma sociedade com uma origem europeia mais evidente. Têm uma grande tendência para socializar o que fazem», comentou.
   Talvez seja verdade. Os argentinos socializam a aprendizagem, nós, por exemplo, apenas socializamos o sofrimento. Quando um argentino é abandonado pela namorada ou pela mulher, o que faz? Vai a um psicanalista, submete-se a dois ou três meses de sessões e informa todos os amigos que está a fazer análise e que lhe tem feito bem. Ao fim daqueles três, quatro meses, o médico convence-o de que a namorada, ou a mulher, não tem culpa nenhuma, mas que a culpa é do pai dele (acaba por ser sempre assim). E o argentino partilha esta descoberta com os amigos, com uma certa tristeza, dizendo: «Olhem só o que o meu velho me fez.»
   Quando um chileno é abandonado pela namorada ou pela mulher, não vai ao psicanalista. Vai ao talho, compra quatro quilos de um  tipo de carne, quatro de outro tipo, prepara tudo segundo a sua receita pessoal, íntima e secreta, e convida os amigos todos para comunicar a novidade: «Sabem que a minha namorada me deixou?». E todos os amigos rebatem: «Sim, sim, ficam-te bem os cornos», e riem-se. Toda a noite e todo o dia seguinte bebem, riem e comem, e ao fim de dois dias a dor diminuiu. O bálsamo curativo está no facto de que a dor é transformada, pela pessoa que a sente, na ação hedonista de preparar a carne segundo a sua própria receita, que por ser tão pessoal requer toda a sua sensibilidade.
   Um dos casos, e não é o único, em que a salvação chega através da comida."

Luis Sepúlveda, in "Uma ideia de felicidade"

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