Isto

   "Julgo que me tornei escritor porque em criança o meu pai me curava as gripes com sonetos em lugar de aspirinas: pela parte da boca que o cachimbo não ocupava saíam ao mesmo tempo fumaças e tercetos cujo efeito medicinal, somado às papas de linhaça da minha mãe, me mergulhavam a pouco e pouco numa espécie de coma rimado, do qual me não libertei totalmente visto que respondo aos polícias das multas em alexandrinos contados pelos dedos no capot do carro. Suponho que habita nos autuantes um crítico literário visto que se apressam a escrever os seus artigos de língua de fora, suando do boné na caligrafia de instrução primária difícil que caracteriza os académicos. Normalmente estes julgadores severos deslocam-se aos pares como os gansos selvagens, os cónegos e os irmãos siameses: existe o impiedoso que castiga, com voz de quem foi alimentado na infância a biberões de vinho tinto e o colega relações-públicas, de ressaca menos azeda, encarregado de explicar, numa amabilidade de mau agoiro eriçada de diminutivos de lojista, que a multazinha deve ser paga com selozinhos fiscais na esquadra de Santa Marta, um andar decrépito cheirando não sei porquê a almôndegas com puré de batata, onde dúzias e dúzias de polícias, sentados em carteiras escolares, tocam máquinas de escrever com um único dedo hesitante, receosos das palmatoadas do mestre-escola invisível. Como têm a cabeça descoberta parecem.me nus. Como o alfabeto lhes é difícil e o desamparo me comove ajudo-os na gramática visto que, entre o sujeito que são e o complemento directo que não sabem o que é, não possuem predicado que os salve. Pertencem à massa de que se fazem os secretários de Estado, passo seguinte na vagarosa evolução da espécie que conduz estas larvas disléxicas a insectos perfeitos de deputados: a banalidade deixa de gaguejar tornando-se veemente mas a atávica ausência de predicados permanece intocada. As minhas crises de dúvida em relação a Deus articulam-se quase sempre com o facto de ter criado o homem à sua imagem e semelhança: a ideia de ser recebido à entrada do céu por um guarda-republicano, um intelectual ou um ministro em versão ampliada obriga-me a transformar a religião atribuindo ao Grande Arquitecto as soluções de recurso e o sentido de humor que as minhas tias, amantes da seriedade e da ordem
   (a falta de namorado conduz a soluções deste género)  
   cuidam apanágio do Diabo. Julgo que para elas não havia
grande diferença entre Salazar e o Senhor: ambos eram conservadores, austeros, inimigos da alegria e invisíveis, e o facto de terem nascido pobres, em Santa Comba Dão ou em palhas de presépio, permitia à minha família olhá-los um pouco de cima para baixo, como para as criadas que casaram lá de casa e subiram a pulso do bilhete da Carris ao Mercedes a gasóleo, o que permitia que as soubéssemos na sala consentindo-lhes generosamente uma aparência de igualdade. Nem Salazar nem Deus passavam, no fundo, de provincianos que as circunstâncias, mais do que o mérito, tornaram ilustres, e a quem se concedia funções de governanta disciplinadora dos atrozes impulsos, de má-criação ou de abuso da compota dos jardineiros e dos filhos. Salazar e Deus, unidos para as servirem com a inabalável fidelidade das antigas empregadas, permitiam-lhes libertar-se de quando em quando de actividades fiscalizadoras demasiado cansativas, que a Pide ou os sermões do prior, capatazes à altura, se encarregavam de resolver num júbilo zeloso. E agora desculpem: não posso acabar esta crónica nem corrigi-la porque a minha filha Joana acaba de chamar-me a dizer que a mãe morreu." 
 
António Lobo Antunes, in "Segundo livro de crónicas"   

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