De fato e gravata

   "Anda tanta boa gente preocupada com o futuro da humanidade, ameaçado pelo aquecimento global, com projetos, reuniões ao mais alto nível e manifestações militantes para diminuir o efeito de estufa, encontrar energias renováveis e não poluentes, denunciando os que não cumprem certas decisões de Quioto, etc., etc., aceitando os mais radicais apenas a bicicleta como meio de locomoção para se diminuir o número de carros que atiram para os ares tantos fumos e calores e nós nem reparamos nos hábitos mais comuns que temos (ou nas nossas mais encravadas manias, como queiram dizer) que contribuem também para esse efeito pernicioso sobre o meio ambiente. Parecem (e são) coisas banais, mas entretanto elas contribuem com o seu pequeno quinhão para a futura miséria do planeta.
   Exemplo desses hábitos ou manias é o de se usar fato e gravata, por vezes colete mesmo, nos climas mais tórridos do mundo. Um calor de morrer, humidade no máximo, e lá andamos nós de pescoço apertado a escorrer suor, casacos mesmo que de verão, meias e sapatos apertados. Não aguentamos a temperatura, corremos a refugiar-nos nos gabinetes e salas refrescadas por aparelhos de ar condicionado, ficamos ainda assim uma meia hora a arrefecer e sem pensar em mais nada senão nos nossos corpos pegajosos, até finalmente nos sentirmos mais confortáveis. Mas não abdicamos do fato e da gravata. Sem fato que seria do burocrata chefe de serviço? Nem parecia um chefe de serviço. E então, que dizer do responsável a nível mais elevado que aparecesse com uma simples camisa? Ninguém o respeitava, parecia um falhado.
   Alguns países adotaram como traje oficial (ou pelo menos recomendado) roupas leves e largas, como é o caso de alguns da África Ocidental ou da América Latina. Para já não falar do célebre e elegante safari à Nyerere ou das camisas coloridas e sóbrias de Nelson Mandela. Eis homens que não fizeram concessões aos preconceitos ocidentais e se vestiram sempre de acordo com o clima, antecipando uma luta que hoje é de todos. Muitos africanos só usam fato e gravata para se parecerem com os europeus que os colonizaram. Nunca foram capazes de ultrapassar esse complexo de inferioridade e se sentem nus se não tiverem um casaco escuro , de preferência vindo de um estilista famoso de Londres ou Paris. Uma maneira de exibirem a importância que por vezes não têm. 
   Mas não me interessam os complexos alheios , desde que não interfiram com a vida de muita gente. E o que se passa é que de facto, se nos vestíssemos mais de acordo com as temperaturas habituais nas nossas terras, menos aparelhos de ar condicionado teriam de trabalhar ao mesmo tempo, havendo pois poupança de energia, menos dano para a camada de ozono, menos aquecimento global, enfim, melhores perspetivas para o futuro do planeta. Dirão que os efeitos dos aparelhos de ar condicionado para a atmosfera serão coisa menor e tudo isto não passa de paleio gratuito a tentar justificar o meu horror em usar fato e gravata. É verdade, não o nego, tenho dificuldades em andar de corda ao pescoço e os casacos pesam-me nos ombros de uma forma incómoda. Só reconheço neles uma utilidade: o de terem vários bolsos, dispensando portanto bolsas ou carteiras, o que por vezes se torna muito prático. Mas para ter alguns compartimentos onde guardar os cigarros, o dinheiro, o canivete, objetos secretos, documentos de identificação e para muita gente os três telemóveis absolutamente indispensáveis, vale a pena sofrer com os apertos do corpo e andar sempre a fugir para o ar condicionado?
   Resumindo e acrescentando algum exagero, andamos a lixar o mundo só por causa de complexos."
 
Pepetela, in "Crónicas maldispostas"

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