Adoro transportes públicos

   "Ontem, andei de autocarro. Já não o fazia há algum tempo e já nem me lembrava do quanto adoro transportes públicos. Adoro toda a experiência que me proporcionam. Adoro a forma como ficamos todos como sardinhas enlatadas, e as conservas estão na moda e é bom apostar no que é tipicamente português. Adoro pessoas de braço levantado com o sovaco a dez centímetros da minha cara; faz-me queixar menos do fumo e da poluição na Avenida da Liberdade. Adoro o facto de não chegarem a horas, porque me faz ter tempo para acabar de me pentear e fazer a barba. Gosto das conversas sobre as mensagens que o gajo lá da escola mandou e o que será que ele quer dizer com isso. É bom ver miúdas de doze anos a saber usar tecnologia e preocupadas com o significado das coisas. Gosto das velhas que olham fixamente e sustêm a respiração para ouvir as conversas. Assim melhoram a capacidade pulmonar e podem participar nas Olimpíadas seniores, na categoria de apneia. É bom ver pessoas activas na terceira idade, tal como ver jovens gandins a saltar por cima das cancelas ou a passar colados às outras pessoas, para não pagar bilhete. É bom ver rapazes a investir no desporto como uma forma de vingarem na vida. Ouro no triplo salto e 110 metros barreiras é, portanto, uma possibilidade. Adoro seguranças, que a única coisa que seguram é a barriga. É bom saber que o ordenado de segurança de metro dá para comer muitos hidratos de carbono. Adoro pessoas a ouvir música no telemóvel sem auscultadores - assim, poupo espaço e, mesmo sem bateria, consigo ouvir música. Adoro que as pessoas se atropelem e não deixem sair antes de tentarem entrar, barrando a porta. Só mostra que somos um povo competitivo e cheio de vontade de começar um dia de trabalho. Adoro o modo como as pessoas estão todas carrancudas, de sobrolho franzido e dentes cerrados. Só mostra que somos um povo de respeito e bons valores, já que sorrir é sinal de pouco siso. Adoro ver as pessoas centradas nos seus smartphones, a manterem-se informadas sobre a actualidade sem falar com ninguém; é bom ver que não se perdeu o hábito de não se falar com estranhos que nos incutiram em crianças. Adoro os cegos a pedir esmola. Fazem-me pensar, a caminho do trabalho, que a minha vida é assim tão má. Adoro as greves e o modo como unem as pessoas todas umas contra as outras, enquanto quem tem a culpa se vai rindo."
 
Guilherme Duarte, in "Por falar noutra coisa"       

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