Que porque

   "Estou diante do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, ao cimo da Calçada de Santana, em Lisboa. Aqui houve outrora o mosteiro do Convento de Santa Ana, destruído pelo terramoto. Camões foi enterrado aqui, da parte de fora do Convento. Olho o terreno ao lado do Instituto. Ia jurar que é o mesmo onde, embrulhado num lençol, foi sepultado aquele a quem, numa lápide ali mandada colocar mais tarde, D. Gonçalo Coutinho chamaria «o príncipe dos poetas do seu tempo».
   Há um melro a cantar. Ocorre-me um extraordinário livrinho de Philippe Soupault sobre Lisboa, intitulado Carte Postale. Começa assim: «Lisboa é a aurora». Mais adiante «...cada um dos pássaros de Lisboa sabe de cor um verso de Os Lusíadas».
   Talvez haja uma toada de Camões no trinado deste melro. Uma toada. Foi o que para sempre ficou dentro de mim ao ouvir meu pai ler em voz alta versos de Camões. Digo ouvir. Eu ainda não sabia ler, não percebia o sentido, mas ficava fascinado com o ritmo, a toada, a cadência, chame-se-lhe o que se quiser. Digo ouvir porque foi assim que tive a revelação da poesia e da música que há dentro da língua. E porque foi ouvindo o som daquelas vogais e consoantes que aprendi de cor, antes de saber ler, algumas estrofes de Os Lusíadas e alguns sonetos de Camões, além de «Perdigão perdeu a pena». Uma toada, um ritmo, uma outra forma de música. Que é, ninguém me convence do contrário, a que se ouve no marulhar do Atlântico. As ondas rolam em decassílabos, às vezes em versos de sete sílabas.
   Pode acontecer que, sem se dar por isso, comece a dedilhar-se uma guitarra invisível tocando as cordas da sexta e da décima ou, mais raramente, da quarta, da oitava e décima sílabas. Ou então que, de repente, comece a falar-se assim. Ou até a dançar. Camões decassílaba-se em nós. Está no sangue, bate no pulso. 
   Depois há o «que porque» da Canção IX:
 
                   Assim vivo; e se alguém te perguntasse
                   Canção, como não morro
                   Podes-lhe responder que porque morro
 
   Que outro poeta seria capaz de juntar estas duas terríveis e rudes palavras e pô-las a cantar? Que porque. Música. Um acto fundador, momento primordial da poesia de língua portuguesa. Que porque.
   Meu pai costumava dizer que a poesia de Camões se pode assobiar. Se calhar é o que o melro está ali a fazer."
 
Manuel Alegre, in "Uma outra memória"
 
 

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